Participação e coletividade na arte contemporânea japonesa

Em 2015, a artista japonesa radicada em Berlim, Chiharu Shiota, esteve no Brasil para realizar sua primeira exposição individual em solo latino-americano. Em Busca do Destino esteve em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, de setembro de 2015 até janeiro de 2016, com curadoria da brasileira Teresa Arruda, e contou com a participação do público brasileiro na construção das obras.

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Chiharu Shiota, Além dos Continentes, 2015

A exposição trouxe três instalações compostas por objetos do cotidiano doados pelo público ou adquiridos pela artista em feiras. Esses objetos, que pertenceram anteriormente a outras pessoas, carregados de histórias e marcas pessoais, formaram trabalhos artísticos inseridos, em sua maioria, em locais de passagem, que levavam o público a um percurso por histórias individuais que foram conectadas e resignificadas pela artista. Uma dessas instalações, intitulada Além dos Continentes, foi composta por centenas de sapatos usados doados pelo público, enfileirados na parede e conectados por fios de lã vermelha, na fachada no Sesc Pinheiros. Os fios partem de um único ponto e seguem linhas retas em direções diferentes, criando várias fileiras que indicam diferentes destinos. Os sapatos são objetos pessoais que carregam marcas de lugares percorridos, de pessoas e do tempo. A obra trata de individualidade, memória e principalmente de jornadas. Já Acumulação – Em Busca do Destino foi outra instalação localizada em um local de passagem: a escada rolante do Sesc. O trabalho foi composto por 200 malas usadas presas ao teto por fios vermelhos de lã, fazendo com que elas flutuassem sobre a cabeça do público que subia ou descia por ali. Nesse caso os objetos não foram doados pelo público, mas adquiridos pela artista em feiras livres de Berlim. Não se sabe quem foram seus donos, o que essas malas já carregaram ou seus destinos anteriores, sabemos apenas que um dia foram descartadas. A imagem da mala está associada a locais de passagem, como aeroportos e rodoviárias e, assim como os sapatos, também possuem marcas, memórias pessoais e evocam, sobretudo, intimidade.

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Chiharu Shiota, Acumulação – Em Busca do Destino, 2015

O clímax da exposição se deu com a instalação Cartas de Agradecimento, cuja participação do público colocou-se como ponto chave para a sua realização. A instalação foi composta por 3.713 cartas de agradecimento escritas pelo público brasileiro a pedido da artista, distribuídas ao longo de mais de 350 km de fios de lã preta, que criaram um novo espaço arquitetônico dentro do espaço expositivo do segundo andar do Sesc Pinheiros. Milhares de pessoas interromperam a sua rotina para escrever cartas agradecendo a alguém, em sua maioria à família, a amigos e a Deus. Poucas cartas citaram bens materiais.

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Chiharu Shiota, Cartas de Agradecimento, 2015

Chiharu Shiota captura as memórias e o afeto não só dos que escreveram as cartas dispostas por todas as direções, mas também do público que percorre os corredores criados pelos fios de lã. A quantidade de cartas e a localização de muitas delas torna impossível a leitura de todas, fazendo com que cada espectador crie o seu próprio percurso e tenha uma fruição diferente da obra. Além de servirem de suporte para as cartas, os fios de lã criam um magnífico efeito visual. Eles seguram, entrelaçam e conectam, além da matéria, as memórias e emoções que carregam. Diferentes histórias são conectadas pela artista e pelo olhar do espectador, que torna-se mais que uma testemunha, é também um narrador. Ao contrário das outras instalações, localizadas em locais de passagem, Cartas de Agradecimento é quem cria um local de passagem com seus corredores de lã, que convidam o público a percorre-los.

O uso exclusivo de objetos usados e cartas escritas manualmente pelo público demonstra o interesse da artista pelas memórias já existentes, que eles carregam em si, tornando ainda mais interessante o trabalho de apropriação e conexão entre os objetos. Esses ready-mades são pequenos pedaços de vidas, cheios de histórias e vestígios de destinos percorridos, que se transformam em uma grande memória coletiva.

Cartas de Agradecimento não existiria sem a participação do público, o que a configura como uma obra de arte relacional, definida por Nicolas Bourriaud (2009, p. 19) como “arte que toma como horizonte teórico a esfera das relações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação do espaço simbólico autônomo e privado”. A obra de Chiharu Shiota aproxima o público de sua criação e estreita as relações humanas em um período onde os meios de comunicação de massa nos distanciam. O próprio ato de escrever cartas está quase extinto, dando lugar a interações intermediadas por meios digitais, como o e-mail e aplicativos de mensagens instantâneas. Porém a carta manuscrita possui uma particularidade que as mídias digitais não possuem: a marca da mão do autor. A caligrafia, uma das mais antigas formas de arte do Japão, é um dos principais pontos desta obra. A escolha da lã de cor preta nesta instalação, diferente da vermelha utilizada nas outras, cria também uma relação com a tinta que os calígrafos utilizam na tradição oriental.

Desenhos com diferentes traços e a variedade de caligrafias indicam a diversidade de autores que participaram da obra de Chiharu Shiota. Se a artista pedisse as mensagens em forma de e-mail, não haveria tanta pessoalidade em cada conteúdo compartilhado.

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Kazuo Shiraga, Please Come In, 1955

É possível falar de arte participativa japonesa desde pelo menos os anos 1950, com obras do grupo Gutai, como a instalação Please Come In (1955), de Kazuo Shiraga, que utilizou varas de madeira para criar uma estrutura cônica e encorajou o público a adentra-la. Ao se situar dentro da estrutura, o espectador tinha uma experiência totalmente diferente com a obra, pois seu arranjo visual na parte interna remetia à antiga bandeira militar do Japão, banida em 1945. O deslocamento do espectador era necessário para que essa experiência ocorresse.

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Yoko Ono, Cut Piece, 1964

Na performance Cut Piece, realizada pela primeira vez por Yoko Ono em 1964, a artista se ajoelhou no palco, com uma tesoura em sua frente, e convidou o público a cortar as roupas que estavam em seu corpo, peça por peça, e levar consigo seus pedaços enquanto ela permanecia em silêncio reproduzindo a posição japonesa polida seiza, adotada em ambientes formais e respeitáveis. A performance agrega temas como o voyeurismo, a vulnerabilidade da mulher, a subordinação de gênero, a violência e violação do espaço da mulher. Também nesse caso a atuação do público é fundamental e potencializa significados que não seriam tão patentes, ou mesmo inexistiriam, se a própria artista cortasse suas roupas.

Chiharu Shiota herda desses artistas o desejo de participação do público, mas com outras preocupações e finalidades. Suas instalações tratam de intimidade, de memórias e do transitório. A artista está interessada em acumular e resignificar objetos que de alguma maneira fizeram parte da vida de outras pessoas em contexto de deslocamento, com marcas de passagem pelo mundo, e os insere justamente em locais de passagem, resignificando também o espaço onde são colocados. Em Cartas de Agradecimento a artista cria um momento de socialidade ao propor que uma pessoa expresse sua gratidão a outra, trabalhando na esfera das relações inter-humanas, uma tendência que ganhou força nos anos 1990, como identifica Bourriaud (2009, p. 43) no livro Estética Relacional: “as reuniões, os encontros, as manifestações, os jogos, as festas, os locais de convívio, em suma, todos os modos de contato e de invenção de relações representam hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais”. Ainda segundo Bourriaud, a geração dos anos 1990, onde Chiharu Shiota se inclui, retoma a questão dos encontros casuais da arte dos anos 1960, porém sem o problema da definição de arte. O limite da arte não é mais testado, mas a sua capacidade de resistência dentro do campo social global.

Num segundo momento, as cartas viram objetos de exposição, apresentando dentro da instalação uma função estética. Essa oscilação entre contemplação e uso é identificada por Bourriaud pelo nome de realismo operatório. A artista transforma as cartas em elementos escultóricos e torna o seu conteúdo público aos espectadores. O fio de lã também possui sua função estética e utilitária ao mesmo tempo, ele sustenta as cartas e é um símbolo das relações humanas, conecta toda a matéria e cria o percurso a ser explorado pelo espectador.

Na obra de Chiharu Shiota tudo está conectado. Ao mesmo tempo em que trata de individualidade, a artista também trabalha com a ideia de coletivo, tanto na execução da sua obra, que exige a participação de outras pessoas, como em seu próprio significado atribuído pela acumulação e pela conexão com os fios de lã.

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Chiharu Shiota, Cartas de Agradecimento, 2015

Referências:

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2009.

BRYAN-WILSON, Julia. Remembering Yoko Ono’s cut piece. In: Oxford Art Journal, vol. 26, n. 1, p. 101-123, 2003.

FERNANDES, Thiago. Chiharu Shiota: em busca do destino. In: Dasartes, Rio de Janeiro, n. 44, p. 41-47, 2016.

KUNIMOTO, Namiko. Kazuo Shiraga: the hero and concrete violence. In: Art History, vol. 36, n. 1, p. 154-179, 2013.

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